lunes, 28 de octubre de 2024

o que aconteceu com nós, mulheres, para produzir-se tal renúncia? fomos criadas por um sistema que nos inoculou a ternura, a afetividade, a empatia, mas, será que é conatural serem assim? me questiono depois da trigésima vez (invento uma cifra) que preciso refrear-me diante destes sentimentos (ou será patrões comportamentais). tô cansada de me limitar pelas faltas dos outros, e também, pelas minhas próprias faltas que ressurgem dos vazios que o medo tem causado ao longo desses últimos anos, (sinto, pelos contínuos relatos, que com todas nós). em que momento renunciei a me comunicar, a florir, botar para fora. o passo do tempo consiste nisso, ficar velhx é manter a boca selada? Engolir a palavra que não mais brota, desconfiar do outro, do historicamente oposto? confesso que tô cansada. desconfiar me cansa e me esgota de mais. Eu não sou assim, eu floreio, vou para cima procurando os raios. cadê a minha inocência, quero ela de volta. queria assim falar do desejo, da mágoa, não deixar quisto, interrogar, sincerar-se… tá tão difícil, mas em que momento isso virou moda? calar para espantar o medo, calar ás vozes caso elas tenham algo a revelar de nós. Será que tá tudo tão feio aí dentro que a melhor opção é ficar recolhido em se mesmo? Vivemos numa sociedade traumatizada (não achei uma métafora boa para expresar tal situação) Mas isso não era então para nós coletivizar mais, todos quebrados assim nas nossas dores? eu sei que o mundo tá hostil, qualquer relação vira guerra de interesses, guerra de poderes, de egos. A gente já não fala mais em simultaneidade e sim em hierarquia de poderes, ai esses conceitos se inserem e tu fica pensando: em que lugar me encontro nisso tudo? Acima-embaixo. tanto faz porque não se trata do mesmo patamar e aí perde sentido, qualquer comunicação o perde se for para falar nesses termos. nos lugares onde o orgulho grita mais alto. voltando na pergunta: em que momento houve essa renuncia, esse apagamento do feminino, da nossa energia social-ancestral-aprendida-natural, sei lá, eu sinto que minha vontade de falar e de me conectar com os outrxs com quem me vinculo é irrefreável (Já nem podermos falar de vínculos, mas nessas alturas me recuso a falar de liquidez) Queria ter longas conversas sobre, e no dia seguinte seguir com as nossas vidas tendo aprendido algo novo, tendo consciência do direito a nos esvaziar em companhia de um corpo que recebe e acolhe (que atua como catalizador) o que não necessariamente o converte em nosso. dessa forma, ainda caberia falar em humanidade, e não em teoría social, antropológica, política, conceituações vazías. 

Não obstante, hoje me vi contando até sei lá quanto para não falar uma coisa que realmente precisava falar, que achava justo, para limpar a alma. Diante disso decidi calar. foi aí que percebi que os rios não fluem mais do mesmo modo, sinto, formou-se um buraco, uma quebra que me leva consequentemente há uns anos atrás. Ao próprio início da quebra, à rasgadura, à perda da inocência, à desconfiança nos homens. No Brasil chamam isso de gatilho, eu chamo isso de injustiça.

Queria, queria ter coragem para reverter esse medo coletivo, essa sombra individual que me acompanha há um tempo. Queria abrir a boca, escrever simplesmente um (a) quebrar o silêncio pesado em que os sentimentos se afundam se percam e morram. Mas a ferida é grande, viu. Minha vontáde de olhá-la é ínfima, não consigo mais encarar que isso aí continua vivo e dilacerante depois de tudo. com que facilidade os empecilhos tornam-se materiais no nosso cotidiano.

O que não foi dito hoje não será mais dito, isso é o que diz o nosso tempo atual onde tudo se some numa vorágine. A palavra morre como um suspiro - ouço na minha cabeça - . E com cada situação que decido calar uma parte de mim e da minha originalidade se perde.

 


viernes, 10 de mayo de 2024

O meu primeiro amor no Brasil foi uma gata brasileira.

 

        A Betinha foi embora, e a casa agora tá vazia. Ninguém imaginava que eu me apaixonaria por uma gata do jeito que eu me apaixonei por Betinha. Mulher tinha que ser. Agora me enfrento com um luto em clave brasileira e não sei muito bem como encarar esse sentimento ora estranho ora profundo. Resgatar um gato de rua é se submeter a condições atmosféricas incertas. É dar remédio de seringa, é constatar que todas as funções hepáticas estão bem, é olhar nos olhos da gata e saber que ela quer comer outra ração e dar de boa porque ela veio com 1,2 kg, com os ossinhos quase aparecendo por cima e o cheiro a humidade. É aprender a ler de novo no olho alheio.

Como é bonito ver um bucho pelado sendo um bucho cheio, um bucho suave esperando um xero longo e pausado. A respiração da Betinha ecoa acompassada com o ritmo do meu coração, a gente late junto. Betinha tinha o bucho rasurado porque ficou internada dois dias, e eu ainda me lembro do chorinho dela quando eu fui embora para deixá-la na salinha do médico. Foram dias de muito cuidados, de muito chamego, de escuta atenta. Tirei de ti as pulgas que não paravam de se mexer na tua cabeça, limpei tua boca daquele remédio que tinha mal cheiro, joguei fora os teus resíduos, cotidianamente, todas as manhãs. Gastei todo aquele plástico que disse que não ia gastar. E mesmo assim, tu nunca reclamasse de nada, sempre com o teu olhar grato, teu amor puro, tua dança na casa. E agora... como a casa tá vazia sem ti, Betinha. Nunca tinha reparado nessa solidão em que tinha me instalado de forma complacente, tal vez tu chegasse na minha vida para me avisar que foram muitos anos me dando amor sem lembrar que dar e entregar amor é uma das coisas mais difíceis que existe. Se despedir é externalizar a dor que a gente carrega por dentro. Isso me lembrou a algumas despedidas do meu passado e alguns processos de desfragmentação nem sempre agradáveis. Sinto que a chegada da Betinha poucos dias antes do meu aniversário abriu algumas feridas. Esdra disse que com certeza foi um rito de passagem, mas eu não sei se foi um castigo, um milagre ou um grito de atenção vindo do universo para me dizer, Sandra, tu precisa cuidar de algo que não seja somente você. E assim, me tirar do egoísmo, da egolatria, do castigo que a própria individualidade carrega e que as vezes resulta tão compromissório e cego. Nos últimos anos impus uma relação comigo mesma para nunca mais me deixar de lado, e aí veio Betinha para me tirar do sonho e me devolver o amor pelo outro, um amor puro como há muito tempo não sentia. Agora a casa está vazia, e eu já não sei se eu aceito mais esse estado de graça em que me abriguei. Voltarei a ser a mesma de antes, tão independente assim? Betinha me fez lembrar que dar cuidados é uma forma de se amar a se mesmo, me fez lembrar que olhar ao outro é se espelhar de uma forma diferente: sendo olhado é como a gente vira gente no mundo.

Agora na casa é só silêncio, não tem mais uma figura saindo de embaixo da mesa, sempre com esse medo do abandono. Não tem mais você nos meus pés enquanto preparo comida, enquanto lavo faxina, enquanto faço xixi no banheiro. Tu esquentavas meus pés nesse calor nordestino, você me feria os tornozelos confundindo-o com carinhos. Queria você aqui me mordendo a bochecha, achando casinha no meu pescoço, ronronado na altura dos meus braços enquanto olhamos os carros da rua passarem. Quem diria que iria viver essa paixão brasileira, esse amor animal, esse carinho atribulado, despretensioso, aconchegante. Tal vez essa dor seja porque a casa virou mais casa, finalmente. Ou porque apesar de não pensar em ser mãe, a gente se falava em primeira pessoa e te chamar de mãe não soava tão forte quanto eu pensava. Betinha chegou para me fazer refletir, para me trazer questões complexas de volta. Te peguei da rua, virei mãe por quinze dias, te ninei como se nina as criaturas frágeis, com os braços tremendo que só. Contigo aprendi o significado de dengo, pois nunca antes precisei usar essa palavra. Minha querida Betinha... chegasse para decorar a casa com teu som de gata siamesa e agora não tem música que apague isso. Chegasse para me lembrar que todo mundo precisa de carinho, que todo mundo precisa se sentir necessário. Tal vez você não lembre de mim daqui para frente, mas meu pensamento simbólico e humano te levará comigo sempre. 

A Mamãe efêmera que te ama.